A Emilia-Romagna além de ser considerada a região de melhor culinária em toda a Itália, é sede de numerosos monumentos e bens tombados pela UNESCO.

Essa fama não é gratuita, pois são originários de lá pratos e produtos culinários famosos em todo o mundo, entre eles: o capeletti, o gnocchi, a mortadela, diversos tipos de salames e queijos (parmesão, gorgonzola e pecorino), o prosciutto di parma, o vinagre balsâmico, o torrone. Por outro lado, localidades como Bolonha, Modena, Rimini, Faença, Ravena e Ferrara, são sedes de monumentos históricos impressionantes.

Além disso, a região é zona de colheita de trufas brancas e negras, zona de produção de fungi porcini e, na planície padana e zona de Romagna, há um grande desenvolvimento no cultivo de diversos tipos de cereais, frutas, legumes e uvas.

É da Emilia-Romagna que vem um dos vinhos mais famosos, mais consumidos em todo o mundo e, porque não dizer, mais subestimados: o Lambrusco. De fato, o Lambrusco tornou-se sinônimo de vinho desprezado pelos “conhecedores”, embora, na realidade, não se resuma ao vinho doce e gaseificado, mais parecido com um refrigerante ou cooler.

Observe-se que Lambrusco é um termo que se refere tanto a uma uva, quanto a um tipo de vinho.

A história da videira e do vinho na Emilia-Romagna remonta ainda aos etruscos, no século VII A.C., sendo, posteriormente, aprimorado pelos romanos e está ligada à sua uva mais famosa, o Lambrusco, mencionada por Plínio, o Velho, no seu Naturalis Historia, onde descreve as suas propriedades e características médicas. Não se sabe ao certo qual é origem do nome dado à uva Lambrusco. A teoria mais aceita é que seja uma junção dos termos labrum e ruscum, que, em latim, significam, respectivamente, “margem do campo” e “planta selvagem”, o que denota ser a uva algo comum na região, citada, inclusive, por volta do século 42 a.C. pelo poeta Virgílio em um de seus poemas. No século VII A.C., as descobertas arqueológicas realizadas nestas áreas permitiram constatar com certeza que naquela época os habitantes destas terras se dedicavam à viticultura.

Seu provável surgimento deve-se ao acaso. O suco de uva elaborado à época era armazenado em ânforas e fermentavam. Tais ânforas eram lacradas e submersas no mar para preservar a temperatura. Quando eram emersas, a mudança de temperatura propiciava uma retomada da reprodução das leveduras e, consequentemente, uma segunda fermentação espontânea. Com isso, o vinho se gaseificava com o CO2 decorrente do processo.  Na produção do Lambrusco, são cultivadas atualmente 13 variedades de uvas entre as quais destacam-se: Sorbara, Grasparossa, Salamino, Marani e Maestri. Em várias de suas versões, são adicionadas outras variedades de uvas, não pertencentes à família Lambrusco, como a Ancellotta e a Malvasia.

Uvas

As áreas de Reggio-Emilia e Modena são dominadas pelo cultivo de Lambrusco, nas variedades Lambrusco Salamino, Lambrusco Maestri, Lambrusco Marani, Lambrusco Montericco e Ancellotta. O Lambrusco di Sorbara e o Lambrusco Grasparossa são mais prevalentes no Modenês.

Cada uma dessas variedades é ligada a uma denominação de origem, como o Lambrusco di Sorbara, produzido em Modena e apresentando um corpo rubi claro e perlage com comprimento médio e compactada, com aroma de frutas vermelhas e notas florais, ou o Lambrusco Salamino, que tem seu nome derivado pelo formato dos cachos da uva utilizada que lembram um salame,  utilizado em rosés e tintos, produzido em Mantua, Modena e Reggio Emilia, caracterizada por um amadurecimento mais tardio, por seu dulçor e, consequente, produção de vinho mais açucarado.

Popularizado em todo o mundo, de valor mais baixo e sabor adocicado, o Lambrusco foi desprezado injustamente por muito tempo nos meios enófilos, mas sua reabilitação vem sendo feita e alguns espécimes de Lambruscos podem revelar surpresas inesperadas.

Recentemente, o Consorzio Tutela del Lambrusco di Modena, que é o responsável pela fiscalização da produção de vinho nas Denominações de Origem Controlada da região, estabeleceu regras a serem rigidamente obedecidas seguidas pelos produtores visando o controle de qualidade de seus exemplares.

DOC

O Lambrusco pode ser frisante ou espumante, e, dessa forma, precisa ser produzido através de métodos que armazenem o CO2 liberado durante a vinificação. Os métodos Champenoise, Ancestral ou Charmat estão autorizados pelas diversas autoridades de certificação, sendo a escolha feita pela vinícola, em função de seus métodos e tipo de uva utilizada.

Embora os Lambruscos tenham a uva e o conteúdo de gás carbônico como padrão comum, em cada território — as chamadas DOP, Denominaciones di Origine Protetta (Denominações de Origem Protegida) que determinam os produtos característicos da região geográfica em que são produzidos, — há pormenores e regras que permitem variações a serem implementadas por cada vinícola.

A vinícola pode escolher se o Lambrusco será branco, rosé ou tinto. Além disso, de acordo com a DOC de produção, o teor alcoólico da bebida, embora possa oscilar, é invariavelmente mais baixo do que o dos outros tipos de vinho, ficando em torno de 10% a 11%. Não há uma DOC única, definidora das características do Lambrusco, mas várias concepções, de acordo com a localidade em que são produzidos e da variedade da uva utilizada.

Assim, um dos mais conhecidos Lambruscos, o Grasparossa di Castelvetro, produzido em Módena, para ser certificado segundo a DOC local, deve apresentar 85% de uva Lambrusco Grasparossa. À boca, apresenta-se com pouca efervescência, assemelhando-se mais a um tinto que a um frisante, com corpo e taninos evidentes. Sua coloração é de um violeta intenso.

Já o Lambrusco Mantovano recebe a única DOC que não se situa na Emilia-Romagna, já que é produzido na Lombardia. Seu estilo é predominantemente seco, sendo, entretanto, possível encontrar algumas versões abboccato e amabile.

O curioso Lambrusco Salamino di Santa Croce, segundo os regulamentos da DOC da região, situada próxima à cidade de Sorbara, deve conter no mínimo 90% da uva e é um vinho de perlage refinada, acidez adequada e predominam as versões os amabile e dolce.

Na comuna de Módena encontramos uma outra DOC:  a que regula a produção dos Lambruscos di Sorbara. Nesse caso, o Sorbara deve apresentar 85% no mínimo da uva Sorbara e o restante da Salamino. É considerado um dos melhores Lambruscos, com perlage refinada e aromas intensos e acidez vibrante.

O mais famoso e exportado dos Lambruscos é o DOC Reggiano, produzido na comuna de Reggio. Essa é a versão DOC mais flexível, admitindo produtos que apresentam as variedades Maestri, Marani, Montericco e Salamino, com corte de até 15% de uva Ancellotta.

Produção

Lambrusco é difundido nas vinhas a partir da província de Parma e torna-se o protagonista quase absoluto nas de Reggio Emilia e Modena. Os espumantes feitos a partir dele, secos ou doces, vão muito bem com os pratos da culinária emiliana, principalmente com as típicas carnes curadas locais. Importante é o Lambrusco Grasparossa di Castelvetro DOC, produzido nas áreas montanhosas próximas à vila medieval de Castelvetro, na província de Modena.

Em Emilia, parte ocidental da região, os vinhos espumantes das diferentes variedades de Lambrusco são particularmente importantes.

Em geral, a segunda fermentação utiliza comumente as leveduras Saccharomyces Bayanus, as mesmas usadas para produzir Sidra. Ao término de todo o processo, o Lambrusco frisante deve apresentar, no máximo, 2,5 atmosferas, enquanto que os espumantes devem ter pressão equivalente a no mínimo 3 atm. Além da quantidade de CO2, a escolha de um Lambrusco deve levar em consideração o teor de açúcar por litro contido em suas diversas apresentações. Assim, são classificados como: seco, quando apresentam até 9 g/l de açúcar; abboccato (ligeiramente doce), com teor entre 10 e 18 g/l; amabile (semi doce), entre 18 e 45 g/l; e dolce (doce), acima de 45 g/l.

Características

Por utilizarem predominantemente a mesma uva e que apresenta variedade sutis, as características comuns e marcantes dos Lambruscos, ao olfato, são um bouquet aromático intenso, onde destacam-se notas de frutas vermelhas, como amora, morango e framboesa, nuances florais, como de violeta e flor de laranjeira, além de toques de especiarias, como pimenta-preta.

Já em boca, o Lambrusco é leve, revelando grande frescor e pouca presença tânica.

Terroir

O terroir onde as videiras de Lambrusco florescem é marcadamente úmida. A região situa-se no caminho do Pó, maior rio da Itália, para onde convergem muitos afluentes que descem os Montes Apeninos que, em sua margem direita, estabeleceram o solo da região Emiliana.

O resultado foi um solo de fundo arenoso, permeável, solto e rico em potássio. Plantas nativas como álamos, olmos e carvalhos entremeiam-se com as videiras, fazendo com que os pomares e vinhedos cultivados através dos séculos criassem paisagens originais e marcantes.

O clima da região apresenta grandes variações, com temperaturas muito altas no verão e bem baixas no inverno, fazendo da uva Lambrusco uma espécie forte, capaz de resistir a situações desfavoráveis. A umidade é intensa, tornando a deposição de gotículas no solo a marca da terra onde os Lambruscos crescem. Até os anos 20 do século passado, os pântanos que marcam a região representavam um empecilho para o trabalho dos agricultores até que foi empreendido um enorme trabalho de recuperação com a construção de labirintos de canais e valas para regular o fluxo das águas e permitir a irrigação praticamente generalizada.

Nesse ambiente as videiras Lambruscos – Salamino di Santa Croce, Sorbara, Grasparossa, dentre outras – impressionam por seus cachos cheios, seus frutos marcantes e com intensa pigmentação.

Ao longo dos séculos, o vínculo da população, emiliana em particular e italiana no geral, com este vinho tornou-se profundo, tanto porque compensou a dureza do trabalho no campo e ocasionais escassez de alimentos, como porque caracterizou os momentos mais importantes socialmente, como cerimônias, aniversários e festivais religiosos.

Harmonização

Desse modo, o Lambrusco caracteriza-se como um vinho versátil, que pode se fazer presente em mesas variadas, desde as entradas, passando pelos pratos principais e chegando até às sobremesas.

Sua personalidade leve e refrescante recomenda que seja refrigerada previamente e servido a uma temperatura em torno de 7°C.

Graças à sua vivacidade, juventude e à sensação de frescor que transmite, o Lambrusco é perfeito como aperitivo. Pode ser apreciado tanto em sua forma mais leve, frisante, como na mais intensa, espumante, para acompanhar tábuas de queijos e frios que contenham queijos maduros, como Parmigiano e Grana Padano, e carnes curadas, como salame e prosciutto.

Por ser um vinho com aromas e sabores frutados, bastante acidez e poucos taninos, para equilibrá-lo no paladar é importante encontrar pratos com uma certa untuosidade, porém, com sabor não tão intenso. Está, portanto, indicado nas refeições compostas por massas, pizzas e carnes de porco, aves grelhadas e de cordeiro o Lambrusco harmoniza muitíssimo bem.

Já com as sobremesas deve-se optar pelas versões do Lambrusco mais leves e adocicadas que combinam bem com sobremesas à base de frutas vermelhas ou cítricas.

Sobre Deyse RibeiroDeyse Ribeiro é natural de Minas Gerais, mas vive na Toscana desde 2007. Fez curso de sommelier na FISAR, master em Wine Expert (Academia del Gusto) e Guia Enológica na Itália. É empresária, guia de turismo, especialista em turismo de experiência na Itália, além de editora do Portal Tour na Itália, e deste site.

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